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“Se a PEC 55 limita direitos sociais, é uma proposta também racista”

Para o presidente do Instituto Luiz Gama, população negra será desproporcionalmente afetada pela medida pois é a que mais depende de serviços públicos

Alvo de inúmeros protestos nos últimos meses, a PEC 241, que tem como objetivo o congelamento dos gastos com saúde, educação e assistência social pelos próximos 20 anos e tramita no Senado como PEC 55, vai afetar principalmente a população negra e periférica.

O diagnóstico é de Silvio Almeida, presidente do Instituto Luiz Gama, dedicado a atuar na defesa de causas populares e movimentos sociais, especialmente em questões sobre os negros. Em entrevista a CartaCapital, Almeida afirma que somente o desconhecimento total da população a respeito da PEC pode permitir que ela seja aprovada.

Para Almeida, o congelamento dos gastos sociais nos próximos representará uma nova etapa no processo de subalternização e extermínio da população negra simplesmente por manter inalterado o funcionamento das instituições brasileiras, que já são enviesados contra os negros. 

“A PEC 55 é um exemplo do que falo: não é preciso que ela preveja a morte de negros. Basta que ela seja aprovada, segundo as leis, pelo Congresso Nacional, e negros irão morrer, mesmo sem que um tiro precise ser dado. Morrerão nas filas dos hospitais, nas ruas, nas prisões”, diz.

CartaCapital: Alguns ativistas afirmam que a PEC 55, aprovada na Câmara como PEC 241, teria um caráter racista por conta de sua natureza. O senhor pode explicar essa relação?

Silvio Almeida: A partir do momento em que a PEC 55 limita o financiamento dos direitos sociais, temos, sim, uma proposta também racista. Segundo dados do IBGE, Ipea e do Relatório Anual das Desigualdades Raciais da UFRJ, a população negra, em seu conjunto, é a que mais depende de serviços públicos como saúde e educação, bem como do sistema de seguridade social, que engloba previdência e assistência social.

Ora, a PEC 55 prevê um congelamento orçamentário de 20 anos de duração, em que o orçamento de um ano para outro só poderia ser corrigido pela inflação, independentemente de eventual aumento do PIB ou das necessidades concretas da população. A capacidade de planejamento e de formulação de políticas públicas serão irremediavelmente comprometidas, e com ela a estabilidade política e econômica.

CC: Na sua avaliação, a proposta afetará em maior grau a população desfavorecida econômica e socialmente ou haverá uma consequência direta para toda a população brasileira?

SA: Toda a população será afetada, sem exceção, entre negros e não-negros. O que a PEC 55 faz é romper com um frágil pacto social representado pela Constituição Federal. A Carta projeta um horizonte jurídico de conciliação de classe e de raça, o que se dá, fundamentalmente, com a imposição ao Estado brasileiro do dever de promover os direitos sociais. A PEC 55 inviabiliza, na prática, os direitos sociais. O resultado disso será um acirramento dos conflitos sociais e de uma disputa terrível de grupos sociais por um minguado orçamento público.

Por certo os mais pobres e os negros não terão como entrar nessa disputa pelas rubricas orçamentárias, cujos vencedores, nesse modelo político, já estão definidos: o setor financeiro, que irá garantir que o orçamento financie os juros da dívida pública; alguns setores do empresariado, que não terão dificuldades em obter financiamentos e serão beneficiados pelas privatizações e pela precarização do trabalho; algumas categorias do funcionalismo público, e aqui me refiro a juízes, promotores e procuradores.

É, portanto, uma medida sob encomenda dos privilegiados pela classe, pelo cor e pelo gênero, já que irá afetar os mais pobres e os que recebem menor remuneração, ou seja, os negros, e em especial as mulheres negras.       

CC: Além destas áreas, a segurança pública também terá seu orçamento congelado. Sabe-se que a população negra é a maior vítima da ineficiência do Estado quando o assunto é segurança. Isso pode afetar ou aumentar o genocídio negro?

SA: O extermínio da população negra será não apenas reforçado caso a PEC 55 seja aprovada, mas o extermínio será a forma possível de gestão estatal dos conflitos sociais. Não haverá mais pacto possível, não haverá como sustentar diante de um trabalhador ou trabalhadora a fábula de que se pode “confiar nas instituições” quando não se tem educação, saúde, moradia, saneamento e as instituições estão desmoronando.

É o que o filósofo camaronês Achille Mbembe chama de Necropolítica, ou seja, a política gerida pelos mecanismos da morte. Basta olhar a situação do Rio de Janeiro se acharem que estou exagerando quando falo dos efeitos nefastos desses processos de ajuste fiscal. No Brasil isso está ganhando um caráter particularmente antinacional, antidemocrático e racista.  

CC: Você enxerga diferenças entre os termos genocídio e extermínio negro?

SA: Ambos os termos expressam uma realidade: a morte de pessoas negras pelo sistema político e econômico. Entretanto, uso a palavra extermínio para evitar que o tema seja tratado pela ótica exclusivamente jurídica. O genocídio é crime tipificado em normas internacionais. Em sendo crime – e o que o Estado brasileiro faz é criminoso –, é necessário tratar as coisas nos termos do direito para que haja a responsabilização: há que se identificar o dolo – a ação consciente e que objetive um determinado resultado – para que haja a responsabilização.

Eu utilizo o termo extermínio porque acredito que a morte de negros e negras independe do “dolo” de um agente público, o que torna o tratamento jurídico do problema insuficiente para lidar com todos os aspectos da eliminação da população negra.

Negros e negras são mortos devido ao funcionamento “regular” do sistema. Basta, portanto, que o Estado, a economia e o direito mantenham-se em pleno funcionamento para que negros e negras continuem a morrer. A PEC 55 é um exemplo do que falo: não é preciso que ela preveja a morte de negros. Basta que ela seja aprovada, segundo as leis, pelo Congresso Nacional e negros irão morrer, mesmo sem que um tiro precise ser dado. Morrerão nas filas dos hospitais, nas ruas, nas prisões.

CC: Na sua opinião, qual a importância de discutir a proposta da PEC 55 a partir do recorte da população negra e periférica?

SA: A PEC 55 só pode ser aprovada se a população não souber do que se trata. E a verdade é que a maioria das pessoas nem sabe o que é PEC. Um ajuste fiscal dessa monta depende da destruição do pouco de democracia que ainda temos. PEC 55, terceirização, privatizações, diminuição da maioridade penal e até o famigerado “escola sem partido” fazem parte do pacote de “desdemocratização” essencial para aprofundar a desigualdade que tanto beneficia a alguns.

E aí entra o debate racial: no país mais negro fora da África resistir a qualquer avanço autoritário, criar um projeto popular e democrático e viabilizar um projeto nacional depende do quanto estamos dispostos a lutar contra o racismo.(fonte:carta capital)

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