Ianka Mikaelle fez 18 anos dois dias depois que Sofia chegou ao mundo, no fim de janeiro. O diagnóstico de microcefalia veio aos sete meses de gravidez – e logo depois do primeiro golpe, Ianka recebeu o segundo. Seu namorado, pai de seu primeiro filho, a abandonou.
“Ele disse que estava com nojo de mim, que me desprezava. Aí me deixou”, conta Ianka com Sofia no colo, embrulhada numa mantinha branca com a palavra “princesa” bordada em cor de rosa.
Casos como o da jovem se somam no ambulatório especializado em microcefalia do Hospital Municipal Pedro I, em Campina Grande, na Paraíba.
A unidade, montada às pressas em novembro do ano passado para responder ao repentino aumento de casos de microcefalia no Nordeste, vêm recebendo dezenas de bebês do interior do Estado para sessões de fisioterapia e acompanhamento médico, mas também para terapia individual ou em grupo para as mães.
Os dramas enfrentados pelas mulheres atendidas aqui se sobrepõem. Pobreza, gravidez precoce, abandono pelos parceiros – são problemas corriqueiros.
Jaqueline Loureiro, psicóloga da unidade, diz que todas as mulheres aqui têm padrões socioeconômicos baixos e muitas vivem apenas do Bolsa Família.
Diversas foram de fato abandonadas pelos parceiros, como Ianka; mas Jaqueline diz que há muitos outros casos de abandono velado. Os maridos ficam, mas não se fazem presentes. Ela calcula que apenas 10% das mulheres atendidas pelo ambulatório de fato recebem o apoio necessário dos maridos.
‘Não tem mais mulher nesta casa?’
“Muitas delas não recebem suporte nem financeiro, nem emocional (dos parceiros). Porém, não se veem como tendo sido deixadas por não ter sido um abandono oficializado”, diz Jaqueline.
“As mulheres têm que tomar a frente de tudo sozinhas. E a gente sabe que essa história está apenas começando”, aponta.
O Nordeste, afirma ela, é uma região “predominantemente machista”, e isso se reflete nos relatos que as profissionais ouvem no ambulatório. A fisioterapeuta Jeime Leal diz que os maridos esperam que as mulheres continuem cuidando da casa.
“‘Por que você não fez a janta? Não tem mais mulher nesta casa?’ Elas têm que ouvir cobranças como essas, além de todo o cuidado que precisam ter com a criança. São crianças que choram muito e requerem muitos cuidados. Às vezes elas passam noites e noites sem dormir.”
Sem chance de trabalhar
Ianka largou a escola aos 15 anos, quando engravidou do primeiro filho. Pensava em voltar a estudar e estava procurando emprego quando engravidou de Sofia. Ela mora com os pais em Campina Grande a não tem e menor perspectiva de sair de casa.
“Lá em casa são nove pessoas, contando meus dois filhos. Só meu pai trabalha, ele é pedreiro. É um pouco difícil por causa disso. Eu durmo na cama dos meus pais com meu filho, a Sofia no berço, e meu pai e minha mãe dormem no chão. Eles cederam a cama para a gente”, diz sorrindo com um misto de vergonha e gratidão.
Na prática, muita da responsabilidade recai sobre a mãe de Ianka, Edivânia Barbosa de Lima, que a acompanha sempre ao hospital e é como se fosse uma mãe também para a neta.
“Ianka é muito dependente de mim. Como o rapaz não quis mais viver com ela, ela vive comigo e eu faço tudo por ela. Na hora de trocar o bebê, ela fala, ó, mãe, toma. Eu troco, com o maior amor. Não me queixo”, conta.
A maternidade precoce está na família. Edivânia também engravidou pela primeira vez aos 15 anos, e hoje, aos 36 anos, tem cinco filhos e os dois netos.
“Quando a Sofia nasceu, eu levei um choque muito grande quando a vi. Mas agora todo mundo lá em casa é louco por ela”, diz. “No começo eu sofri muito pela situação, pelo probleminha dela. Mas acho que Deus só dá para você o que você pode cuidar. Vou fazer tudo que puder pela minha neta.”
Demora no salário-benefício
A sala de espera do ambulatório no Pedro I se assemelha a uma sessão de terapia coletiva. Na tarde de uma quinta-feira, as mães conversavam animadamente, falavam de seus bebês, de suas famílias, de suas experiências. Há pausas pensativas, mas também gargalhadas.
Essa rotina se repete duas vezes por semana e a essa altura as mães parecem velhas amigas. Muitas levam horas para chegar de cidades vizinhas, buscadas de madrugada pela condução que vem sendo oferecida pela prefeitura.
Francileide Ferreira vem de Galante, município a cerca de meia hora de Campina Grande. Ela tem 30 anos e Rafael, de três meses, é seu quinto filho.
Somado, o dinheiro que recebe do Bolsa Família – R$ 200 por mês – e dos bicos que o marido arranja não têm dado para comprar o leite em pó do Rafael, além de fraldas, pomadas. Ela tem pedido ajuda para as outras mães, as médicas e familiares.
“Dá vergonha, mas tem momento que a gente tem que se humilhar mesmo”, diz com um sorriso sem graça.
Francileide deu entrada no início do ano no pedido para receber o Benefício de Proteção Continuada, programa do governo que paga um salário mínimo a famílias de pessoas com deficiência que tenham renda mensal de até R$ 220.
O benefício é operado pelo INSS, e o trâmite demanda uma perícia tanto para comprovar a deficiência no bebê quanto para aferir o baixo padrão de renda.
Francileide só conseguiu agendar a visita da perícia para março, e enquanto isso continua dependendo da caridade dos outros. A história se repete entre as outras mães no ambulatório – a demora para conseguir o benefício faz com que muitas ainda não tenham se animado a tentar, como é o caso de Ianka.
‘Quando Deus dá, não tem problema não’
Francileide nos permite acompanhá-la até a sua casa, uma construção simples e inacabada numa rua de paralelepípedo em Galante; mas busca evitar a atenção dos vizinhos ao entrar em casa com uma equipe de reportagem.
A primeira coisa que faz é pedir para a filha mais velha, de 13 anos, preparar a mamadeira do Rafael – que parou de aceitar logo cedo o peito da mãe por dificuldade de sugar. Enquanto coloca o filho na banheira para tentar refrescar seu corpo franzino depois do trajeto quente na traseira de uma ambulância.
Ela veste o filho com um macaquinho branco com o desenho de um cachorro e uma meia esgarçada que fica caindo do seu pé – até que Francileide a prende com um elástico ao redor de seu tornozelo. A meia puída decerto passou por seus outros filhos; é estampada de micro-ônibus e caminhões, com a palavra “HERO” (herói) escrita em inglês.
O mosquiteiro sobre a cama de Francileide não foi suficiente para evitar as manchas vermelhas e dor nas juntas que apareceram no início da gravidez, com febre e dor de cabeça. Meses depois, ela soube que o filho tinha microcefalia e estava com “líquido na cabeça.”
“Achei estranho. Porque nunca tive filho assim, com problema. Aí o quinto ser assim. Nunca pensei em ter um filho assim”, conta ninando o filho no colo, remédio certeiro contra o berreiro que acabara de abrir.
Francileide costumava trabalhar em lavouras na região. “Cultivava milho, feijão. Eu gostava. Mas agora não vou mais poder trabalhar”, diz ela, resignada.
“É mais trabalhoso, criança com deficiência. Mas Deus quis assim, e quando Deus dá, não tem problema não. Vou cuidar dele como cuidei dos outros”, diz ela, aBíblia a seu lado no sofá.
Fase de negação
Mas a fé das mães e a confiança no futuro das crianças às vezes deixa as profissionais no Hospital Pedro I com o coração na mão.
“Muitas delas ainda estão em negação”, afirma a psicóloga Jaqueline Loureiro. “Os bebês têm comportamento similar a qualquer outra criança nessa fase de desenvolvimento. As dificuldades que essas crianças vão ter ainda não estão tão perceptíveis.”
“A maioria imagina que é só o tamanho da cabeça. Falam que quando o cabelo começar a crescer, vai cobrir a cabeça, e ninguém vai perceber”, conta a fisioterapeuta Jeime Leal, acrescentando que muitas dizem não ver a hora de as crianças estarem correndo pelo corredor.
“Elas nem sempre têm noção de que esse tamanho vai fazer com que o cérebro não se desenvolva e a criança não alcance os objetivos que deveriam ser alcançados.”
Não lhes cabe desconstruir essa esperança, afirmam elas – e sim procurar dar suporte para as mães ao longo de todas as fases do caminho.