RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Preto Zezé presenciou “um negócio meio louco demais”, isso lá pelo meio da pandemia, “no olho do furacão”: um bate-boca entre evangélicos sobre o uso da máscara para conter um vírus em escalada letal no Brasil.
Presidente da Cufa (Central Única das Favelas) Global, ele entregava cestas básicas numa favela de Fortaleza. Deu de cara com uma igreja onde 300 pessoas se aglutinavam sem qualquer cobertura facial. Reclamou e foi apoiado por fiéis de outro templo, que lhe deram razão.
“Um grupo falava que na sua igreja quem entra é ungido, não precisava”, relembra. “Já outro dizia que Deus deu o livre-arbítrio e que precisávamos fazer a nossa parte. [Uma mulher] dizia a outra: ‘Irmã, que isso, tem vários irmãos que estão com Covid na UPA, morrendo. A gente foi orar por um irmão intubado’.”
Diante do novo galope de casos da Covid-19, persevera o debate sobre como oferecer serviços religiosos a cristãos, que são oito de cada dez brasileiros.
Cultos evangélicos e missas católicas continuam acontecendo e reunindo dezenas, centenas e até milhares de pessoas em espaços quase sempre fechados. Igrejas como a Batista Atitude, frequentada pela primeira-dama Michelle Bolsonaro no Rio, mantêm as pregações presenciais e outras atividades.
Na sexta (4), a Atitude divulgava nas redes sociais treinamento funcional gratuito. A orientação dada por telefone: não haveria limite de alunos, mas a atividade física seria ao ar livre, cada um deveria levar seu álcool em gel e “uma luvinha” se quisesse.
A Universal do Reino de Deus avisa que, nos lugares que liberam encontros religiosos, abre com 60% da capacidade. No domingo (6), o bispo Jadson Santos pregava na Catedral Mundial da Fé, um megatemplo da igreja no Rio. A certa altura, orientava o público a se aproximar do altar.
Entre testemunhos como a da mulher que teve a tíbia esfarelada num acidente de moto e disse ter se recuperado com ajuda da água ungida pela Universal, Santos pedia que as pessoas se esforçassem para estar presencialmente na igreja naquela semana.
Edição de novembro da Folha Universal, o jornal da congregação, mostra uma reunião conduzida em 15 de novembro pelo próprio em São Paulo. Estava cheia, com todos de máscara, à exceção do bispo, isolado no púlpito.
Outra reportagem, “Autoridades do meio jurídico brasileiro participaram de tour no Templo de Salomão”, traz uma foto de dois bispos da Universal com uma desembargadora. O trio com rosto descoberto.
Na página seguinte, uma matéria segue o embalo do Placar da Vida, criado em abril pelo governo Bolsonaro, que tem Edir Macedo como aliado. A ideia é destacar dados positivos relacionados à Covid-19, como o número de curados.
A publicação da Universal faz o mesmo ao sublinhar que o país tem quase 5 milhões de recuperados. “Os números são otimistas, mas isso não significa que a pandemia acabou. Não é aconselhável afrouxar as medidas de proteção”, afirma o texto.
Na semana passada, o Culto de Gratidão liderado na zona norte carioca pela pastora Elizete Malafaia, esposa de Silas Malafaia, tinha assentos intercalados e álcool em gel para os fiéis, todos mascarados.
Nos primeiros meses, “os prefeitos queriam fechar totalmente as igrejas, e o lugar do culto é inviolável”, diz o pastor Silas Malafaia. Agora não tem mais jeito, segundo o líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo. “Não adianta querer fechar nada, primeiro porque a economia não aguenta. Segundo, num país com transportes públicos lotados, é piada.”
Os templos são os mais zelosos pela saúde pública, ao contrário “desta turma de bar, boate, show, que é uma aglomeração, uma bagunça”, continua Malafaia. “Isso não é igreja. Não leva a mal, não. Se tem um grupo que tem feito um trabalho de cuidado, somos nós.”
Não é o que acontece em parte das denominações, porém.
“As igrejas estão fazendo cultos e vigílias lotados. Raro ver alguém de máscara”, diz o pastor Daniel Elias, de uma Assembleia de Deus de Duque de Caxias (Baixada Fluminense).
A cruzada negacionista ainda preserva seus paladinos. “Na primeira onda te impediram de ir à igreja. Na segunda, vão proibir que sua família celebre o Natal. Existem mil maneiras de se combater o cristianismo”, tuitou na quinta (3) o influencer bolsonarista Luiz Galeazzo, post curtido por 6.500 seguidores. “O vírus é a mais recente delas.”
Mas perdeu espaço a ideia, popularizada no início da crise sanitária, de que o coronavírus não era esse bicho-papão todo, e que as medidas recomendadas pela ciência para debelá-lo poderiam ser substituídas pela fé.
Esse princípio foi solo fértil para sugestões enganosas, como a venda de sementes de feijão, por até R$ 1.000 cada, pelo apóstolo Valdemiro Santiago em sua igreja, a Mundial do Poder de Deus. Ele afirmava que cultivá-las levaria à cura da Covid-19. Virou alvo do Ministério Público.
“Mas isso é enganar? Não, você que tá enganado”, afirmou no púlpito o pastor, que dizia ter laudo médico de “gente em estado terminal curada” porque “Deus operou e fez maravilha”.
Em março, Edir Macedo protagonizou um vídeo em que pedia para fiéis de sua Universal não superestimarem a doença. “Satanás trabalha com o medo, o pavor. Trabalha com a dúvida. E, quando as pessoas ficam apavoradas, com medo, em dúvida, as pessoas ficam fracas, débeis e suscetíveis. Qualquer ventinho que tiver é uma pneumonia para elas.”
Em junho, Macedo se internou com Covid-19. “Tomei todos os medicamentos indicados pelos médicos, entre eles a hidroxicloroquina, e estou bem”, afirmou o bispo, citando o remédio favorito de Jair Bolsonaro.
Se permanece o gosto pelo tratamento de eficácia questionada, aos poucos mirra a descrença inicial com o perigo da moléstia.
A morte do senador Arolde de Oliveira (PSC-RJ), fundador do Grupo MK de Comunicação, um dos maiores do segmento evangélico, ajudou a diluir o corolário negacionista.
Em 19 de abril, o octogenário tuitou seu inconformismo com “a inutilidade do isolamento social” adotado por “autoridades, alarmistas por conveniência, [que] destruíram o setor produtivo”.
Certo estava o presidente ao se opor desde sempre à quarentena, disse Arolde. Em outubro, virou uma das 16 mil vítimas de Covid computadas pelas secretarias de Saúde naquele mês.
Para Felipe Augusto Carvalho, diretor-executivo da Associação Nacional de Juristas Evangélicos, é condenável que decretos fechem igrejas e não outros setores da sociedade, e é importante evitar “que a liberdade religiosa seja esvaziada”.
“Temos conclamado que as igrejas mantenham uma posição colaborativa e de obediência às medidas sanitárias: distanciamento, disponibilização de álcool em gel e aferição de temperatura”, diz.
Também os católicos se dividem sobre a melhor forma de reagir à pandemia. “As igrejas particulares seguem os protocolos conforme sua realidade local”, afirma a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) em nota à Folha. “O bispo diocesano tem autonomia para decidir sobre a abertura ou não.”
A assembleia-geral dos bispos, quase todos no grupo de risco, seria em abril, mas foi adiada para 2021.
Mais atrativa para jovens fiéis, a Canção Nova, do movimento carismático da Igreja Católica, também freou eventos in loco.
Por ora não receberá em janeiro, em sua sede no interior paulista, peregrinos para o acampamento Revolução Jesus. Será online. O Pai tá on.
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