A diferença a mais do custo do segundo produto foi de 141%.
O governo Jair Bolsonaro pagou R$ 3,59 por máscara do tipo PFF2, considerado um dos melhores modelos para proteção contra o coronavírus, e R$ 8,65 por unidade de uma máscara que acabou escanteada por ser imprópria a profissionais de saúde. A diferença a mais do custo do segundo produto foi de 141%.
A existência de um contrato para compra de 500 mil máscaras PFF2 diretamente da 3M do Brasil, a um custo de R$ 3,59 por peça, foi omitida em ofícios do Ministério da Saúde ao MPF (Ministério Público Federal) em Brasília.
Assim, não foi possível saber que o governo Bolsonaro pagou por uma máscara imprópria mais do que o dobro do valor pago por uma máscara tida como adequada e eficiente. As duas compras foram feitas com dispensa de licitação, no começo da pandemia da Covid, em 2020. A informação só foi fornecida após insistência do MPF.
A Procuradoria da República investiga irregularidades na aquisição de equipamentos de proteção impróprios, do tipo KN95, de fabricação chinesa.
O então secretário-executivo do ministério, coronel do Exército Élcio Franco, e o então diretor do Departamento de Logística em Saúde, Roberto Ferreira Dias, foram cobrados por procuradores a entregar a relação de todos os contratos de compra de máscaras feitos pelo ministério durante a pandemia.
Dias assina esses contratos. Ele foi demitido do ministério após um atravessador de vacinas inexistentes denunciar uma cobrança de propina pelo diretor no valor de US$ 1 por dose. O caso foi revelado pela Folha.
Franco está abrigado em um cargo na Casa Civil da Presidência. O coronel e Dias são investigados pela CPI da Covid no Senado.
Em pelo menos três ocasiões, Dias escondeu a existência do contrato com a 3M, omitindo da tabela de contratos informada ao MPF qualquer menção à compra feita ainda no começo da pandemia.
O único contrato referente a máscaras do tipo N95 -KN95 e PFF2 são associadas a esse modelo- que aparece nas tabelas é o da aquisição do produto suspeito.
Reportagem publicada pela Folha em 17 de março revelou que as máscaras KN95 fornecidas pelo Ministério da Saúde eram impróprias para uso por profissionais de saúde, segundo entendimento expresso em parecer da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Uma parte expressiva contava com a inscrição “non-medical” na embalagem.
As máscaras chinesas foram adquiridas da Global Base Development HK Limited, uma empresa de Hong Kong. A representação junto ao ministério foi feita pela 356 Distribuidora, Importadora e Exportadora, cujo dono é Freddy Rabbat -é ele que assina o contrato na pasta.
Rabbat é um empresário que atua no mercado de relógios de luxo suíços.
Com o Ministério da Saúde, ele assinou um contrato para venda de 40 milhões de KN95 e 200 milhões de máscaras cirúrgicas. O valor total do contrato é de R$ 691,7 milhões. Metade desse valor se refere às máscaras impróprias.
Diante da impossibilidade de uso por profissionais de saúde, os equipamentos de proteção ficaram parados em galpões nos estados e acabaram sendo destinados para uso por pessoas fora de ambientes hospitalares.
Uma segunda reportagem da Folha mostrou que o preço pago estava acima do mercado, conforme um documento do Ministério da Saúde que balizou o negócio.
O que havia sido omitido do MPF, que investiga essas irregularidades, é a existência de uma contratação direta, sem intermediários, no mesmo momento da pandemia e com um preço bem inferior ao pago a partir da atuação de atravessadores.
A CPI da Covid investiga o mesmo modelo adotado no governo Bolsonaro em relação às vacinas.
O Ministério da Saúde colocou empecilhos para comprar os imunizantes da Pfizer e do Instituto Butantan e abriu as portas para atravessadores e intermediários, como a Precisa Medicamentos, no caso da vacina indiana Covaxin, e militares representantes de outros negócios.
O contrato assinado diretamente com a 3M teve o valor de R$ 1,79 milhão. O documento foi assinado em 12 de março de 2020.
Dados do Portal da Transparência, do governo federal, mostram que o pagamento foi efetivado e que cada máscara saiu por R$ 3,59, como consta no contrato.
Já o contrato das máscaras chinesas, com intermediários, foi assinado em 8 de abril de 2020. A KN95 saiu por US$ 1,65, ou R$ 8,65, conforme a cotação do dólar estabelecida no contrato.
As duas compras foram feitas na gestão de Luiz Henrique Mandetta, demitido do cargo de ministro da Saúde em 16 de abril.
As gestões seguintes defenderam a compra da KN95, não agiram para substituí-las e permitiram a continuidade de Dias à frente das principais compras na pandemia. A demissão só ocorreu em razão dos avanços da CPI.
O então diretor de Logística, em ofício ao MPF em novembro, ocultou a existência do contrato com a 3M do Brasil. No principal inquérito em curso, a procuradora Luciana Loureiro cobrou novas informações, em 30 de março deste ano. Em 14 de abril, Dias voltou a omitir a existência da compra da PFF2, afirmando existir apenas o contrato com o representante de relógios de luxo.
Loureiro, outra vez, pediu que o ministério informasse todas as aquisições feitas de máscaras KN95, N95 e PFF2. O ofício foi enviado em 13 de maio. No dia 20 daquele mês, o então diretor finalmente forneceu as informações e uma cópia do contrato com a 3M do Brasil.
Em julho e em agosto, após a demissão de Dias, a procuradora questionou a gestão de Marcelo Queiroga sobre a execução dos contratos e sobre o destino de todas as máscaras KN95 e PFF2.
A omissão sobre a existência do contrato da PFF2 se deu em um segundo procedimento do MPF, que investigou os preços cobrados. O processo foi arquivado.
A 356 Distribuidora, por meio dos advogados Eduardo Diamantino e José Luis Oliveira Lima, afirmou em nota que os preços estavam abaixo da média de mercado.
“Na ocasião, houve aumento sem precedentes da demanda mundial, o que influenciou os preços. Apesar da competição, o Brasil conseguiu concluir a aquisição, feita diretamente entre governo e fornecedora chinesa.”
As máscaras têm certificação aceita internacionalmente e eficácia na retenção de 95% de partículas, cita a nota. “Os equipamentos seguem especificações de Anvisa e Inmetro.”
A 356 Distribuidora importa e exporta produtos como relógios, uniformes profissionais e máscaras, segundo os advogados. “Freddy Rabbat atua com comércio exterior há mais de 40 anos, nunca foi acusado de qualquer irregularidade e representa marcas de reputação mundial.”
A 3M do Brasil e o Ministério da Saúde não responderam aos questionamentos da reportagem.
Notícias ao Minuto.