Aos 40 anos, uma em cada cinco brasileiras já interrompeu uma gravidez, prática restrita pela lei e condenada pela opinião pública
Fernanda (nome fictício) tinha 17 anos. Grávida de dois meses, no último ano do Ensino Médio, em desespero e com medo de decepcionar os pais, tomou Cytotec trazido do Paraguai no banheiro da república que dividia com amigas, no interior de São Paulo.
O medicamento é um dos muitos nomes do misoprostol, remédio para úlcera gástrica, mas frequentemente utilizado como abortivo. Ela não se arrepende, mas não se esquece do episódio ocorrido há 15 anos. Hoje, constata: “Como é proibido, a mulher faz qualquer coisa e coloca a vida em risco. Tive sorte”.
A história de Fernanda é compartilhada por outros tantos milhões de mulheres no Brasil. Os números revelam uma realidade muitas vezes subterrânea e silenciosa. E mais presente do que se imagina. Estima-se que, aos 40 anos, uma em cada cinco tenha feito ao menos um aborto ao longo da vida, ou 4,7 milhões de brasileiras.
Somente no ano passado, 503 mil optaram pela interrupção da gravidez. Foram ao menos 1,3 mil abortos por dia, 57 por hora, quase um por minuto. Essas brasileiras são, acima de tudo, mulheres comuns. Os dados foram revelados pela Pesquisa Nacional do Aborto 2016, um dos maiores levantamentos sobre o tema no Brasil, realizado pelo Anis – Instituto de Bioética em parceria com a Universidade de Brasília e financiado pelo Ministério da Saúde.
“Ao reconhecer que quem faz aborto no Brasil é uma mulher comum, trazemos para perto de nós o que, no discurso, não tem biografia ou rosto. No Congresso, fala-se do tema como uma abstração. A mulher que aborta está em nossa família, na nossa vizinhança. Ela não é uma fantasia criada pelo debate moral”, afirma Debora Diniz, professora de bioética na UnB e uma das coordenadoras da pesquisa.
Em geral, a mulher que procura o procedimento é religiosa e conhece a maternidade. Segundo o levantamento do Anis, 88% são evangélicas ou católicas e 67% têm filhos. As taxas são maiores entre negras, indígenas, com menor escolaridade, e moradoras do Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
O aborto só é permitido no Brasil em caso de gravidez resultante de estupro, risco de morte da gestante e feto anencéfalo. Restrita pela legislação e condenada por 79% dos brasileiros em pesquisas de opinião, a interrupção da gravidez ainda é um tema interdito, alvo de disputas políticas no Congresso e discussões no Supremo Tribunal Federal.
A criminalização não impede, porém, que abortos continuem a ser realizados em banheiros, clínicas particulares e fundos de quintal, em procedimentos muitas vezes inseguros, que colocam a vida em risco. A Organização Mundial da Saúde estima que 47 mil mulheres morrem anualmente por complicações relacionadas a abortos clandestinos em todo o mundo.
Com base nessa realidade, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, proferiu um voto histórico. Ao julgar um caso específico, a Primeira Turma da Corte entendeu que o aborto até o terceiro mês de gestação não é crime. “Por meio da criminalização, o Estado retira da mulher a possibilidade de submissão a um procedimento médico seguro”, disse. O ministro ponderou que não se trata de defender a disseminação do aborto, mas de atuar para que seja “raro e seguro”.
Na avaliação de Eloisa Machado de Almeida, professora e coordenadora da FGV Direito São Paulo, o voto de Barroso é um pequeno avanço. O passo seguinte, diz, deve ser a legalização do aborto. “Descriminalizar significa que não haverá persecução penal contra a mulher e o médico. Então o aborto torna-se um direito e, portanto, exige uma contraprestação do Estado na formulação de políticas de saúde, para que essas mulheres possam exercer esse direito”, defende.
“Descriminalizar, evidentemente, é um passo importante, mas legalizar é absolutamente necessário, sobretudo em um país marcado por tantas desigualdades”, continua Machado.
Para o ministro, a criminalização do procedimento também é incompatível com a autonomia da mulher, com seus direitos sexuais e reprodutivos, com a integridade física e psíquica da gestante e com o princípio da igualdade de gênero. “Como pode o Estado impor a uma mulher, nas semanas iniciais da gestação, que a leve a termo como se tratasse de um útero a serviço da sociedade?”
No mundo todo, revelam dados da OMS, uma em cada quatro gestações é interrompida. Entre 2010 e 2014, foram 56 milhões de abortos por ano. Duas décadas atrás, entre 1990 e 1994, a taxa era de 50 milhões. A conclusão é de que os abortamentos diminuíram nos países desenvolvidos, mas não nos periféricos.
A maior taxa ocorre justamente na América Latina, um dos continentes com as leis mais duras. Na região, apenas Cuba, Guiana, Guiana Francesa e Uruguai legalizaram o aborto. A rigidez da legislação coloca o Brasil ao lado de países como Nicarágua, Angola e Iraque. Ainda assim, 32% das gestações latino-americanas, entre 2010 e 2014, terminaram na interrupção da gravidez. No mesmo período, o registro foi de 17% nos Estados Unidos e no Canadá. Para a OMS, leis mais restritivas, além de não reduzirem os abortos, levam mulheres a buscar procedimentos ilegais.
Ofensiva
A reação do Congresso ao aceno do STF sobre a descriminalização foi instantânea. No mesmo dia, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, anunciou a instalação de uma comissão especial que pode incluir na Constituição uma regra clara sobre aborto. “Sempre que o Supremo legislar, vamos deliberar sobre o assunto”, discursou.
Maia, que deve concorrer à reeleição ao comando da Casa, empreitada para qual precisará dos votos das bancadas religiosas, tomou a decisão em meio à pressão dos deputados cristãos. Originalmente, a comissão foi criada para discutir uma Proposta de Emenda à Constituição sobre a ampliação da licença-maternidade para mães de bebês prematuros. Não há menção ao aborto, mas a ideia é inserir na proposta o que chamam de “jabuti”, ou seja, um ponto estranho ao projeto original.
Na contramão da decisão do STF, grande parte dos projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional busca endurecer a punição para o aborto. Das 36 propostas na Câmara, cinco desejam que a interrupção da gestação vire crime hediondo. Um deles é de autoria do ex-presidente da Casa, o deputado cassado Eduardo Cunha.
Zika e microcefalia
O Supremo deve julgar em breve uma ação com potencial de estender o direito ao aborto às grávidas infectadas pelo zika, vírus que pode causar microcefalia nos bebês. O tema seria debatido em plenário no último dia 7, mas o julgamento acabou adiado por conta dos revezes políticos de Brasília.
Em novembro de 2015, o Brasil decretou estado de emergência nacional devido ao surto de microcefalia no Nordeste. Em 1º de fevereiro deste ano, a OMS decretou emergência em saúde pública de interesse internacional, devido ao aumento dos casos de zika nas Américas.
Quatro dias depois, a Organização das Nações Unidas recomendou a descriminalização do aborto nos países atingidos pelo surto. Em setembro, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, enviou ao STF um parecer favorável à autorização do aborto para gestantes infectadas pelo zika.
Quando a Corte autorizou o aborto de fetos anencéfalos, em 2012, prevaleceu o entendimento de que, nesses casos, não há expectativa de vida. O caso da microcefalia é, no entanto, mais delicado. No julgamento, será defendido o direito de escolha da mulher não com base na malformação fetal, mas na ameaça à saúde mental da gestante, como acontece nos casos de estupro.
As consequências do zika, vírus recém-descoberto, não são totalmente conhecidas. As crianças com microcefalia vítimas do primeiro surto estão em seus primeiros anos de vida e muitas sofrem com a ausência de atendimento especializado. Há ainda o abandono, que não raro atinge as mães e os bebês com microcefalia.
“Se sempre foi urgente falar sobre o direito à interrupção da gestação, agora é ainda mais”, afirma Diniz. “Temos uma epidemia em curso, que torna a criminalização mais dramática para as mulheres em sofrimento pelos incertos e severos efeitos do zika. Por isso, eu diria: sim, as chances são concretas, pois pela primeira vez vivemos com clareza a realidade de que proteger os direitos reprodutivos é proteger a saúde pública.”
Assim como nas demais discussões do aborto, está em jogo a defesa do direito de escolha da mulher. Há quatro anos, a cineasta Letícia Simões, hoje com 29 anos, decidiu interromper uma gravidez não planejada. “O Brasil é uma catástrofe quando se fala de direitos das mulheres, dos negros e negras, da comunidade LGBTQ. Reclama-se da intervenção do Estado, mas, no corpo da mulher, acham que o Estado precisa estar presente.”(fonte:carta capital)